domingo, 11 de julho de 2010

Quero que vá tudo pro inferno

Fragmentos do livro Roberto Carlos em Detalhes, de Paulo César de Araújo:

Essa música nasceu numa noite fria,em junho de 1965, na cidade de Osasco, interior de São Paulo. [...] Roberto Carlos ouviu um fragmento de som que imediatamente lhe sugeriu uma melodia. Isto é um fato relativamente comum com os compositores: eles ouvem determinados sons que lhes sugerem o início de uma nova melodia."E eu comecei a cantar aquilo e imediatamente fiz o refrão "quero que você me aqueça neste inverno / e que tudo mais vá pro inferno"", lembra Roberto Carlos.
Mas, afinal, por que naquele momento o artista queria mesmo mandar tudo para o inferno?
A inspiração para compor a melodia surgiu por acaso nos bastidores do cinema, mas o tema da canção já estava há algum tempo fustigando Roberto Carlos. Naquela noite fria em Osasco ele apenas expressou em forma de música a saudade que sentia por alguém que estava muito distante. "Eu tinha uma namorada na época que viajou para os Estados Unidos e naturalmente naquele dia eu estava pensando nela e isto sugeriu a música", afirma Roberto Carlos.
Pois, embora não quisesse revelar na entrevista, essa namorada tem nome e sobrenome: Magda Fonseca - que foi a primeira grande musa de Roberto Carlos e para quem ele compôs várias canções de amor. "Roberto era apaixonadíssimo por ela", afirma a divulgadora Edy Silva. Ao contrário das outras importantes mulheres da vida de Roberto Carlos - Nice, Myrian Rios e Maria Rita -, Magda namorou com ele na fase anterior ao grande sucesso do programa Jovem Guarda, portanto, quando o cerco da mídia sobre o cantor ainda não era tão grande. Por isso Magda Fonseca passou despercebida e foi excluída da história de Roberto Carlos. Até agora.
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E ele expressou sua saudade de Magda com um desabafo, mandando tudo para o inferno. "Eu queria que tudo fosse realmente para o inferno. Naquela música eu queria dizer que para mim o que importava era o amor, a saudade que eu sentia e aquelas coisas que envolviam o meu estado de espírito. Então, no momento em que eu fiz aquela música, pouco importava o resto do mundo, porque na minha opinião só o que valia era o amor que eu sentia. Então, que tudo mais fosse realmente pro inferno." No dia seguinte, ele procurou Erasmo para mostrar a primeira parte e o refrão da nova música. "Erasmo, bolei um tema aqui, o que você acha?" Erasmo ficou entusiasmado com o que ouviu e juntos fizeram a segunda parte e o restante da letra de Quero que vá tudo pro inferno. Foi um trabalho de dois meses, aproveitando intervalos de shows, viagens e programas de televisão.
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Quero que vá tudo pro inferno foi uma febre, uma verdadeira coqueluche, como se dizia na época. E ninguém podia evitar a música de Roberto Carlos, que alcançava mesmo quem não a procurasse, mesmo quem não quisesse, mesmo quem não gostasse. A letra não seguia a temperatura ambiente. Em pleno verão, sob um sol de 40 graus à sombra, toda a juventude brasileira, suando e resfolegando, cantava freneticamente o refrão "Quero que você me aqueça nesse inverno / e que tudo o mais vá pro inferno...". Foi talvez a primeira vez que alguém ousou praguejar através de uma canção popular no Brasil. Nas ruas das principais capitais do país, muitos transeuntes paravam diante das lojas de disco para escutá-la.
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O transtorno obsessivo-compulsivo, o TOC, ocupa o quarto lugar entre os distúrbios psiquiátricos mais frequentes, com mais de 7 milhões de vítimas no Brasil. Quem padece de TOC é acometido por ideias recorrentes e desenvolve comportamentos repetitivos, designados pelos médicos de "rituais compulsivos". O distúrbio se manifesta por meio de uma série de excentricidades e manias cultivadas no cotidiano. Uma das mais frequentes caracteriza-se pela obsessão e, consequentemente, compulsão para resolvê-la. Por exemplo: se alguém tem ideia fixa em sujeira, vai se preocupar
excessivamente com a higiene, podendo lavar as mãos várias vezes ao dia. Caso tenha um medo obsessivo de contaminação, vai evitar tocar em outra pessoa para não ser contaminado por vírus e bactérias.
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O TOC foi se acentuando em Roberto Carlos a partir do início dos anos 80, junto com seu mergulho místico. A intensa religiosidade do cantor caminhou paralela ao crescente aumento das suas manias e superstições. É quando ele deixa de pronunciar palavras como mal e inferno, que antes citava normalmente. Em consequência disso, algumas canções foram banidas de seu repertório, como Quero que vá tudo pro inferno, É preciso saber viver e Como dois e dois, composição de Caetano Veloso que ele lançou em 1971. No caso de É preciso saber viver, mais tarde ele conseguiu driblar o medo, pois bastou alterar o "se o bem e o mal existem" para "se o bem e o bem existem" - embora transformando o verso num nonsense total. Já no caso de Como dois e dois isso fica mais difícil, pois a palavra "mal" define a mensagem de Caetano no verso "tudo vai mal, tudo/ tudo é igual não me iludo e contudo". O mesmo acontecendo com a palavra renegada em Quero que vá tudo pro inferno.

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